segunda-feira, 16 de junho de 2008

Dr.LUIS BELEZA DE ANDRADE - IMPULSIONADOR DA FUNDAÇÃO DA COMPANHIA GERAL DA AGRICULTURA DAS VINHAS DO ALTO DOURO E SEU PRIMEIRO PROVEDOR

1
Casa dos Belezas na Escada do Monte dos Judeus



2
Casa da Rua do Loureiro nº 168, conhecida por Casa da Rua Chã
do Mestre de Campo José Vicente de Andrade Beleza



3
Portão da Quinta da Boavista ou da Beleza
na Rua do Choupelo, em Gaia
(guardado na Casa Museu Teixeira Lopes)


4
Brasão com as armas Beleza, Andrade, Pereira,Moutinho
no portão da Quinta da Beleza ou da Boavista




5
Letra e duas assinaturas
de José Vicente de Andrade Beleza






6
Armazéns construidos
por José Vicente de Andrade Beleza,
em Vila Nova de Gaia





7
Brasão com as armas Beleza e Andrade
nos Armazéns de Vila Nova de Gaia





8
Pauta de roupa feita pelas irmãs
Ana e Bernarda Beleza de Andrade
freiras no Convento de Arouca




9
Casa da Rua do Loureiro nº 168
do Dr. Luis Beleza de Andrade

* * *

No tema proposto ao nosso estudo, revelado na síntese do título, torna-se mister colocar uma questão prévia que terá importância no culminar da sublevação ocorrida no Porto naquela quarta-feira de cinzas de 23 de Fevereiro de 1757 – qual seja a precisa localização da moradia do Mestre de Campo José Vicente de Andrade Beleza e família, portanto do seu filho Dr. Luís Beleza de Andrade.
Sobre o caso correm três versões, mas duas não conflituam e antes roboram a substância da realidade.
Na versão reportada por Arnaldo Gama no seu livro UM MOTIM HÁ CEM ANOS (edição Livraria Tavares Martins, 1935, pág. 263), o provedor Luís Beleza vivia logo à entrada da Rua da Bainharia, nas casas onde também estava o escritório da administração da Companhia. Diga-se desde já, para a excluir in limine, que não tem alicerce que a alçapreme a realidade. Sem embargo será a que mais se coaduna com a trajectória da multidão amotinada. Na segunda parte explicarei o sugestivo paradoxo.
Impõe-se desde já uma advertência para exaltar a probidade de Arnaldo Gama. Era escritor de romances históricos muito escrupuloso na reconstituição dos factos, a ponto de instruir a final, a tessitura dos seus romances, com a publicação dos documentos probatórios – as tais Provas como chamava D. António Caetano de Sousa na sua monumental obra HISTÓRIA GENEALÓGICA DA CASA REAL PORTUGUESA.
Certo que nos romances criava tipos e descrevia os factos de parelha com os veros comparsas da história e com a realidade ocorrida que ele, com grande mestria e de forma aliciante, caldeava no entrecho.
O grande investigador Dr. Artur de Magalhães Bastos, ao julgá-lo pela obra produzida, e a propósito da localização controvertida das emparedadas do Porto, adverte que Arnaldo Gama revelava probidade mental e escrúpulo com que escrevendo romances, procurava basear-se na verdade histórica. E Magalhães Basto vai ao ponto de lhe prestar abonação desta guisa: se Arnaldo Gama, mestre de quantos se dedicam ao estudo das velharias portuenses, tinha as suas dúvidas relativamente às afirmações do eruditíssimo Viterbo, forçoso é duvidarmos também (Sumário de Antiguidades, edição Livraria Progredior, Porto, 2ª edição, 1963, pág. 170).
Mas retornando ao meu intento. Ficar a casa dos Belezas de Andrade à entrada da Rua da Bainharia é situá-la completamente distante da Rua Chã, onde os documentos oficiais a localizam, precisamente em sentido oposto ao indicado pelo romancista.
A Bainharia começa na actual Rua Mousinho da Silveira (que no século XVIII ainda não existia), portanto entestando com o Rio da Vila que corre actualmente sob a aludida Rua, e ia até ao muro velho, a cerca do primitivo burgo. Termina, na sua parte norte, na Rua do Souto.
Para todos os que se encontrem neste final da Rua da Bainharia, onde Arnaldo Gama localiza a casa em questão, e queiram ir para a Rua Chã onde culminara o motim de 1757, impôe-se subir o resto do morro e para o fazer ou têm que ir pela Rua dos Pelames, flectindo à esquerda, ou pela Rua de S. Sebastião à direita até atingir a actual Avenida D. Afonso Henriques.
O arruamento da Bainharia não tem pois qualquer conexão directa com a Rua Chã.
Mais concretamente, louvando-me no saudoso amigo Dr. Eugénio Andrea da Cunha e Freitas (in Toponímia Portuense, edição de Contemporânea Editora, Lª, 1999, pág. 101) - a Rua Chã já existia em 1293, e compunha-se de dois troços distintos: do Arco de Vandoma até ao Corpo da Guarda, chamava-se Rua das Eiras, daí até à Rua do Cativo e Paço da Marquesa, Rua Chã. Porque uma era sequência da outra, toda ela foi conhecida também por Rua Chã das Eiras. No encontro da Rua Chã com a do Loureiro existiu um chafariz mandado levantar pelo Senado da Câmara em 1635. Foi ordenada a sua demolição em 1784 porque obstruía a entrada da rua, aí muito estreita.
Vamos agora ler alguns documentos que indicam o arruamento onde ficava a casa deste ramo dos Belezas. Por eles, como se irá concluir, só ficam duas localizações possíveis, ou na Rua Chã ou na Rua do Loureiro.
Lê-se no assento de baptismo de Luis Beleza de Andrade, lavrado pelo pároco António da Costa Falcão no livro de registos paroquiais da freguesia da Sé do Porto que «Luis filho de Jozeph Vicente de Andrade e de sua molher donna Thereza Teixeira, da rua chan, nasceo aos quatorze de Setembro de setecentos e dezoito», acrescentando que foi baptizado no dia 21 do dito mês de Abril, e foram padrinhos o Reverendo António Beleza de Andrade por procuração passada a Dom Bento do Espírito Santo, e José de Belém (livro B nº 12 a fls. 206).
Também, no livro de registos de óbitos da Sé do Porto (1726-1750, fls. 110), foi exarado que Mariana de Araújo, assistente em casa de José Vicente Beleza de Andrade, morador na Rua Chã, faleceu em 23-12-1733; e em outro assento de óbito, este de 26-6-1737, foi registado que faleceu Francisco de Sousa criado de José Vicente Mestre de Campos da Rua Chã (sic) (Óbitos da Sé 1726-1750, fls. 171 verso).
A escritura de dote para casamento de Luis Beleza de Andrade com a sua primeira mulher D. Joana Xavier de Azevedo Soares de Avelar, lavrada pelo tabelião do Porto António Mendes e Matos, em 14-7-1753, nas casas do pai da noiva Dr. Luis Soares de Avelar, nobre cidadão do Porto, juiz executor proprietário da Dízima da Chancelaria da Corte Casa da Suplicação, na identificação do noivo e seus pais, lê-se: «e da outra parte José Vicente de Andrade Beleza, nobre cidadão da governança e da dita Cidade, e Mestre de campo pago de auxiliares, da guarnição da mesma, com seu filho legitimo Luis Belleza de Andrade que teve de sua mulher Dona Theresa Maria Teixeira, moradores na Rua cham da dita cidade...» (Arquivo Distrital do Porto, PO-9º Nota 108, 3ª série, fls. 73 a 75).
Em 11-4-1735, o tabelião do Porto António Mendes e Matos, desloca-se (como ele escreveu: aonde eu Tabeliam vim) às casas de morada do então tenente José Vicente de Andrade Beleza onde este se encontrava presente com sua mulher Dona Teresa Maria Teixeira. Naquele acto fizeram estes outorgantes a seguinte ratificação de confissão de dívida. O outorgante marido diz que estando a mulher ausente na Quinta de Valdigem, precisou de três mil cruzados para pagar as bulas do filho Reverendo António José de Andrade Beleza, chantre da Sé de Lamego, e pedira essa importância ao Dr. João Álvares de Brito, mediante o juro anual de 5%, titulando o mútuo por documento de confissão de dívida em 26-12-1733; também precisou de um conto de reis ao juro anual de 5%, para pagar a Manuel Álvares Correia, do Porto, a quem os devia de empréstimo que lhe fizera para as obras dos novos armazéns que fez em Vila Nova de Gaia, e fora o supracitado Dr. João Álvares de Brito quem lho emprestara mediante escrito particular assinado em 15-1-1734; finalmente, ainda precisou novecentos e sessenta mil reis para pagar a João Antunes Guimarães, do Porto, o empréstimo que deste obteve com vista a custear também as obras dos armazéns em Gaia, e socorreu-se do Dr. João Álvares de Brito que lhe emprestou a dita quantia ao juro anual de 8,4%, mediante escrito assinado em 13-3-1734. E porque de presente ele José Vicente de Andrade Beleza estava para ir para a campanha por ordem de Sua Magestade, agora ele e a mulher D. Teresa Maria Teixeira ratificavam as três aludidas dívidas, que totalizavam a quantia de três contos cento e sessenta mil reis
[1].
À colação abre-se breve historial neste novo tema. Pode-se localizar no tempo, com estreita margem de erro, a edificação dos belos armazéns na margem esquerda do Rio Douro, em Gaia, na Avenida Diogo Leite, que depois foram vendidos à firma vinícola A A Calem & Filho, Lª e que ainda ostentam em bom lavrado, o brasão com as armas passadas ao mestre de campo em 23-2-1722 (fotografias números 6 e 7).
Teriam sido edificados nos finais da segunda década do século XVIII, quando muito nos princípios do ano de 1730, portanto, anteriormente ao referido ano de 1734, quando ele contraiu o empréstimo para custear as despesas com a obra, em 15 de Janeiro de 1734, em cuja escritura afirmou que era para as obras dos novos armazéns que fez em Vila Nova de Gaia. Com efeito, já em 18-8-1730, ele hipoteca-os para garantir o empréstimo obtido junto do Reverendo Manuel Carneiro de Araújo.
Os Beleza de Andrade precisavam de amplos armazéns pois, segundo Susan Schneider, armazenavam mais de setecentas pipas nos seus inúmeros lagares situados em Gaia
[2].
Também, a fotografia daqueles armazéns foi publicada na excelente História de Gaia, monografia editada pela Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia, e que saindo em fascículos, ficou incompleta
[3].
Camilo Castelo Branco, em Mosaico e Silva registara que a inverneira de 1754 fez engrossar a corrente do Douro a ponto de se alagarem ricos depósitos de vinhos na margem esquerda, em Vila Nova de Gaia e que o mais prejudicado, entre os proprietários de armazéns foi José Vicente de Andrade Beleza. Mas este nem sempre foi o mais desafortunado com as cheias do Douro.
Numa rescensão das cheias feita pelo jornal portuense O Comércio, em 27-2-1855, menciona-se a cheia do ano de 1739 decorrente de copiosas e persistentes chuvas. Em 3 de Dezembro daquele ano principiou a crescer o rio e corria tão arrebatado que fazia ondas como o mar. Lê-se nessa notícia: Em Vila Nova arruinou todas as casas da praia, das quais também caíram algumas; e os armazéns a todos levantou o Rio os telhados, menos aos do Beleza, e os arrasou com perda de fazendas.
Foi efectivamente, o mestre de campo abastado proprietário. Na demarcação pombalina da região produtora do vinho fino ou vinho do Porto, após a criação da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro, os terrenos da sua propriedade em riba Douro mereceram o qualificativo dos de melhor produção, ficando no mapa a cor vermelha, o que significa produzirem o vinho da Feitoria ou vinho fino de embarque
[4].
A campanha a que José Vicente de Andrade alude na escritura de confissão de dívida de 11-4-1735, traduziu-se na mobilização geral ordenada em resultado do incidente diplomático ocorrido em Madrid, em 20-2-1735. A casa do embaixador português Pedro Álvares Cabral, senhor de Belmonte, foi invadida por soldados espanhóis que prenderam os servidores daquele a pretexto de terem tomado parte num motim. Isto porque um preso conseguiu refugiar-se na embaixada portuguesa, com o auxílio de dois criados do embaixador. Com a violação das imunidades diplomáticas, a embaixada portuguesa foi assaltada e capturados 19 criados.
Era o agravamento das tensões existentes entre as duas nações peninsulares. Com efeito, vinha aumentando a tendência belicista do monarca espanhol Filipe V, e as dissenções deste com o filho, o Príncipe D. Fernando, casado com a princesa portuguesa D. Maria Bárbara, mais davam ansa à preponderância do partido anti-português na corte espanhola.
Ao incidente diplomático de Madrid, D. João V respondeu com a mobilização geral. Foram guarnecidos os pontos delicados da fronteira alentejana. O marquês de Capicciolatro, embaixador de Espanha, foi proibido de comparecer na Corte e a embaixada espanhola foi assaltada por uma companhia de granadeiros que prendeu 19 criados. Ademais, o monarca português pediu o auxílio inglês e o embaixador britânico ofereceu logo uma força de 20.000 homens e uma esquadra de 20 navios.
Apesar destes extremos a guerra não eclodiu e o desagradável incidente foi liquidado em 16-3-1737, com a mediação da França, da Inglaterra e da Holanda, pelo chamado acordo de Paris
[5].
Ainda a propósito deste incidente, recorde-se que no alvará de foro de D. João V, passado em Lisboa a 14-2-1755, pelo qual foi tomado por Fidalgo da Casa Real com mil e seiscentos reis de moradia por mês e um alqueire de cevada por dia, justifica-se a mercê tendo outrossim consideração aos serviços de «…» José Vicente de Andrade Beleza, natural da cidade do Porto, filho de Manuel de Andrade Beleza, que foi cavaleiro da ordem de Santiago, obrados em praça de soldado infante, e nos postos de alferes, tenente, capitão do Regimento da cidade do Porto, e ultimamente no de mestre de campo de um terço de auxiliares do partido da mesma cidade, por espaço de trinta anos, três meses e dezanove dias continuados do primeiro de Novembro de 1720 até 9 de Março de 1752, que ficava continuando, vindo no ano de 1735 com a sua companhia para o acantonamento do Ribatejo, e 11 de Agosto do mesmo ano, sendo capitão com ela para a província do Alentejo a incorporar-se no seu Regimento, e no tempo que nesta assistiu observar com acerto as ordens dos oficiais maiores, e depois se recolher à dita cidade do Porto em 12 de Janeiro de 1736 havendo-se nesta ocasião com demonstrações de grande e distinto zelo, de meu serviço
[6].
Compreende-se desta forma a alusão que José Vicente faz à campanha a que estava destinado por ordem de Sua Majestade.

Em 24-8-1746, o mosteiro de Santo Agostinho da Serra, situado na Serra do Pilar, em Vila Nova de Gaia, emprazou a José Vicente de Andrada (sic) Beleza um pedaço de monte junto à calçada que do mosteiro vai para os Guindais, por baixo do Senhor do Calvário, e que ele possuía por morte do pai, Manuel Beleza de Andrade que fora a terceira vida do prazo.
Ficava aquele terreno por baixo do Senhor do Calvário pegado à calçada do Pilar que vai da Capelinha do mesmo Senhor para o Senhor de Além e para os Guindais.
Constituía a testada do monte que ficava fora da parede do quintal da quinta da Boavista, dele foreiro, desde o canto da parede junto à viela ou atalho que corre entre a dita Quinta e a pertencente a Manuel Álvares Souto, capitão da companhia de Grijó, até ao outro canto da referida parede junto à serventia das águas que descem do Monte para a praia, e vai dar à porta das casas do mesmo José Vicente que estão pegadas aos armazéns.
Este documento tem grande importância para definir a extensão da Quinta da Boavista, recentemente (por volta de 1968) desaparecida para urbanização e que no seu final estava delimitada pela Rua do Choupelo a nascente, contendo no portão os dizeres QUINTA DA BELEZA e, no remate da pedra de granito, o brasão com as armas de Beleza, Andrade, Pereira e Moutinho, em escudo perlado e encimado por um coronel de nobreza, em substituição do elmo e timbre (ver fotografias 3 e 4).
O conjunto do portão está depositado no jardim da Casa Museu Teixeira Lopes, em Vila Nova de Gaia.
Mas a quinta não se circunscrevia ao lugar do Terreirinho. Prolongava-se até ao monte emprazado pelo mestre de campo sito junto à Serra do Pilar, descia pelo morro e junto à praia, ou seja, junto à zona ribeirinha, pegava com os armazéns por ele mandado edificar.
Para se compreender a extensão da quinta até próximo da Serra do Pilar temos de nos reportar ao século XVIII. Não existia comunicação com o Porto, pela parte de cima de Gaia. O acesso só era feito pelo rio, de barco. Na História de Gaia atrás mencionada, elucida-se que até 1744, as comunicações com a margem direita do rio Douro faziam-se por intermédio de barco, tendo sido a partir dessa data que se estabeleceu uma carreira para transportes de passageiros e de carga entre as duas margens.
Só em Agosto de 1806 foi inaugurada a célebre ponte das barcas que três anos depois cedeu ao peso da multidão na fuga desordenada às tropas francesas do marechal Soult, provocando uma catástrofe.
Em 1834 foi esta substituída pela Ponte Pênsil, ainda na parte baixa, junto ao rio. Só nos finais do século XIX a parte de cima de Gaia teve acesso ao Porto, através da Ponte D. Maria, inaugurada em 4-11-1881, com circulação ferroviária, e a Ponte de D. Luís, para circulação rodoviária e de peões, tendo esta sido, em 2005, alargada para circulação do metro e de peões.
Aquela obra editada pela Câmara Municipal de Gaia lembra que, em meados do século XX, podia observar-se ainda áreas agrícolas no que é a actual cidade de Gaia, e acrescenta: Basta lembrar que nessa altura a Avenida da República apresentava traços de ocupação agrícola que na actualidade são praticamente inexistentes
[7].
Mas retornando ao prospecto de identificar o local da casa onde assistia a família de mestre de campo, na escritura de 27-8-1766, exarada nas notas do tabelião do Porto Luís Jopsé Coelho de Almeida, também ele a exercitar o seu ofício precisamente na Rua Chã, o primeiro outorgante é assim identificado: José Vicente de Andrade Beleza Fidalgo cavaleiro da casa de Sua Majestade Fidelíssima e Mestre de Campo pago de Infantaria Auxiliar do Partido desta cidade e morador na Rua Chã dela. Os outros outorgantes foram João Nevel cavaleiro professo da Ordem de Cristo e o Padre Pedro José Alves Souto, ambos moradores na freguesia de Santa Marinha de Vila Nova de Gaia.
Na parte dispositiva do contrato, João Nevel doava ao mestre de campo todas as águas vertentes que nasciam na sua propriedade no sítio da Fervença, em Gaia, onde se localizavam os armazéns dele João Nevel acima do cabeçudo para a parte do Mosteiro da Serra, a fim do Beleza utilizar essas águas, conduzindo-as pelo cano de pedra por onde corria a que vinha da Fervença, para a Quinta da Boavista situada nos Guindais. E porque o cano passava pelo quintal do padre Alves de Souto, este obrigava-se a não impedir ou embaraçar o curso daquelas águas doadas, nem da outra que vinham da Fervença, e bem assim a conservação e limpeza do cano. Para o efeito, o mestre de campo ficava com a chave de uma porta do quintal do padre e este, em compensação, gozará o direito de regar o quintal enquanto a água se mostrar sobrante à Quinta da Boavista.
Em remuneração pela cedência das águas vertentes, o mestre de campo constituiu naquele acto uma servidão de passagem por um bocado de terreno do seu quintal da Barroca a favor dos armazéns de João Nevel. Para o exercício desta serventia haveria uma porta sempre fechada, colocada e consertada à custa do Nevel
[8].
Em 15-5-1730, o tabelião José Vicente da Silveira desloca-se às casas e morada de José Vicente Beleza de Andrade na Rua Chã, da cidade do Porto, onde se achavam presentes este com sua mulher Dona Teresa Maria Teixeira, com suas filhas Dona Josefa Elvira Beleza e Dona Bernarda Teresa de Andrade. E por estas duas últimas outorgantes foi dito que estavam aceites para Religiosas no Mosteiro de Arouca onde os ditos seus Pais as metiam «…» que de todo o importe de suas legítimas assim Paterna como Materna, e do mesmo modo de toda e qualquer herança ou bens em que viessem a suceder, de tudo faziam doação a favor do Morgado que os ditos seus Pais tinham instituído doando tudo para que se vincule e una ao mesmo Morgado e logre o sucessor dele que os ditos seus Pais nomearão…
[9].
Vem a ponto recordar que mais uma filha do mestre de campo José Vicente professou no Convento de Arouca, de nome Ana Beleza de Andrade. Também nascera na Casa da Rua Chã, no Porto. Esta e a irmã Bernarda Teresa mandaram fazer, em madeira pintada, uma pauta para registo da roupa conventual, que actualmente se encontra em exposição no Museu do Convento de Arouca, contendo a seguinte legenda:

Sacristia de Arouca 1783
Este mostrador ou pauta da Roupa mandarão fazer as duas irmãns Religiozas D. Bernarda Beleza de Andrade e D. Anna Beleza de Andrade, sendo ambas sacristãns no Convento de Arouca no mês de Novembro de 1783.
A parte inferior da tábua contém a indicação do marceneiro seu autor:
Por Manoel da Saritas Barboza, natural de Gemunde &
Esta abreviada relação e análise da massa documental comprova que a casa dos Belezas de Andrade ficava na Rua Chã. No entanto, outros documentos já a localizam na Rua do Loureiro que é o arruamento que vai da actual Praça de Almeida Garrett e Estação de S. Bento - onde sediava o Convento de S. Bento de Avé Maria, demolido para a edificação daquele terminal ferroviário, do risco do arquitecto Marques da Silva - até à Rua Chã.
Segue o comprovativo.
Em 17-10-1730, o convento de Santo Eloy do Porto, dá de aforamento em três vidas de livre nomeação, a José Vicente de Andrade Beleza, cidadão dos da governança da cidade do Porto, e morador na Rua do Loureiro, uma morada de casas sobradadas sitas na Rua da Reboleira, de que foram última vida no prazo velho D. Ana Maria Ventura Pereira, viúva que ficou de Manuel Beleza de Andrade, cavaleiro da Ordem de Aviz (como está na escritura mas erradamente, pois era cavaleiro da Ordem de Santiago).
No auto de apegação as aludidas casas foram confrontadas pelo nascente com as de Bernardo Pinto de Carvalho, boticário, do poente com as de Manuel da Rocha Santos, do norte com a Rua da Reboleira e do sul vão entestar com o muro da cidade para onde têm porta e janelas e dois sobrados.
Esta escritura foi lavrada nas notas do tabelião do Porto, António da Holanda, da qual eu possuo duas certidões, uma requerida pelo outorgante José Vicente de Andrade Beleza, contendo no verso da última folha uma declaração por ele escrita – ver a foto nº 5 - rectificando que, por engano, na escritura ficou a constar que o laudémio era de quarenta um, mas este prazo ficou devoluto por óbito da mãe Ana Maria Pereira, terceira e última vida do prazo velho, pelo que o domínio útil foi devolvido ao senhorio directo o Convento de Santo Eloy dos padres lóios de S. João Evengelista, e na feitura do novo prazo agora ao declarante puseram o laudémio dez um; e outra certidão requerida pelo capitão João Beleza de Andrade, do lugar de Matosinhos, primo de
Luis Beleza e herdeiro universal deste, passada em 28-2-1784, já depois do óbito do requerente.
Luís Beleza de Andrade casou em II núpcias com D. Maria Felisberta de Vilhena, filha de José António Pinto da Fonseca, fidalgo da Casa Real, natural da ilha de Malta, e de sua mulher e prima D. Maria Inácia Cerqueira Pinto Vilhena, os quais casaram em 22-5-1746, neta paterna de Manuel Pinto da Fonseca, que nasceu em 24-5-1681, em Lamego, eleito Grão-Mestre da Ordem de Malta em 18-1-1741, e de D. Rezona Paullachi, da ilha de Malta, e neta materna de Francisco Vaz Pinto, fidalgo da Casa Real, natural de Lamego, e de Clara Cerqueira, de Amarante.
O referido Francisco Vaz Pinto era filho de Miguel Álvaro Pinto, senhor da Quinta de Quadros, em Lamego, fidalgo da Casa Real, alcaide-mor de Ranhados, capitão-mor de Lamego, cavaleiro da Ordem de Cristo, e de sua mulher D. Ana Teixeira, neto paterno de Álvaro Pinto da Fonseca, cavaleiro da Ordem de Cristo, fidalgo da Casa Real, alcaide-mor de Ranhados, senhor de Quadros, e de sua mulher e prima D. Ana Pereira Coutinho.
Por sua vez, Álvaro Pinto da Fonseca era filho de outro do mesmo nome e de sua mulher D. Antónia de Vilhena, neto paterno do morgado de Balsemão
[10].
A D. Ana Pereira Coutinho era filha de Belchior Pereira, senhor da Casa de Penedono, e de sua mulher D. Leonor Coutinho
[11].

Depois de toda esta arenga genealógica, retorno à matéria sujeita ao escalpelo analítico.
Em 23-8-1771, o tabelião do Porto, Luís José Coelho de Almeida compareceu nas casas de morada do Dr. Luís Beleza, à Rua do Loureiro, da cidade do Porto, para lavrar a escritura de obrigação em que foram outorgantes aquele e a esposa D. Maria Felisberta de Vilhena, e bem assim Manuel Ferreira da Silva, morador na Rua Chã, na qualidade de procurador de Luís de Melo Pereira Coelho Correia, fidalgo da Casa Real, e de sua mulher D. Inês Angélica de Araújo, também moradores na Rua Chã.
Neste contrato os primeiros outorgantes, Luís Beleza de Andrade e mulher, reconheceram a dívida de quinhentos mil reis contraída em 18-8-1730 pelo já falecido mestre de campo José Vicente de Andrade Beleza, e a dívida de um conto de reis, contraída em 9-11-1731, junto do reverendo Manuel Carneiro de Araújo, mestre escola da Sé do Porto, irmão da contraente D. Inês Ferreira de Araújo.
Para garantir aquelas duas dívidas o mestre de campo hipotecara as casas em que viviam os agora primeiros outorgantes, na dita Rua do Loureiro, e as que têm, com seus armazéns, no lugar de Vila Nova de Gaia.
Por ter falecido o credor padre Manuel Carneiro de Araújo, sucedeu-lhe no crédito a irmã D. Inês Angélica. Por sua vez, havendo falecido o originário devedor José Vicente de Andrade Beleza, sucedeu-lhe por vocação legítima, como universal herdeiro, o filho Luís Beleza de Andrade que declarou se não acha com dinheiro prompto, por isso pediu à credora D. Inês Angélica a prorrogação do prazo de vencimento daquelas obrigações, confessando-se ele e a mulher devedores daquelas quantias, com o juro anual de cinco por cento
[12].
Importa tecer algumas considerações sugeridas pelo teor da aludida escritura, lavrada três meses antes do falecimento de Luís Beleza, ocorrido na sua Quinta do Bom Retiro, em Valença do Douro.
Os armazéns de Gaia estavam edificados já em 1730, pois, nessa data, foram onerados com a hipoteca acima referida.
Como atrás ficou mostrado, documentos há que dão Luís Beleza morador numa casa da Rua do Loureiro, outros na Rua Chã, e ainda outros localizam a moradia ao fundo da Rua Chã, o que tudo se reconduz ao mesmo local, como veremos de seguida.
Este meu engulhoso interesse em identificar a casa advém de ter servido de palco a um facto histórico de grande relevo, nomeadamente, para a história da cidade do Porto.
Foi assaltada e saqueada na amotinação popular de 1757 contra a Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro porque nela também vivia o provedor, o referido Luís Beleza e na casa anexa guardava-se a documentação da mesma Companhia.

Em 23-9-1953 fui cumprimentar o Dr. Artur de Magalhães Basto no edifício da Câmara instalada então no Paço Episcopal, e para lhe entregar o meu artigo sobre o Dr. Luís Beleza a fim de ser publicado na revista O Tripeiro de que ele era o director, e que efectivamente aconteceu em Novembro do mesmo ano[13].
Na conversa muito agradável então mantida ele disse-me ser sua convicção ter identificado a casa onde vivera o Dr. Luís Beleza, saqueada no motim de 1757. Situa-se nos limites da Rua do Loureiro e da Rua Chã.
Fora mesmo ao seu interior rastrear, sem êxito, qualquer vestígio revelador.
Ora a escritura de 23-8-1771, alicerça a conclusão do ilustre investigador portuense. A casa situa-se precisamente na confluência das duas artérias, ao arredondar a curva, no lado esquerdo do renque de casas, na descida, da Rua Chã para a Rua do Loureiro. Ali onde se situava o chafariz demolido só em 1784, como acima ficou mencionado.
Posto que alterada na fachada do rés-do-chão, agora capeada a mármore de uma cor agressiva, e nela rasgado o vão de grande montra, é uma casa alta bem típica do burgo tripeiro igual às que Ramalho Ortigão se refere, e que actualmente tem os números de polícia 166-168 da Rua do Loureiro, última casa desta rua.
Foi recentemente sujeita a obras de restauro de muita qualidade pela Câmara Municipal do Porto.
Apresenta um belíssimo prospecto lavrado em cantaria com influência do barroco espanhol.
A casa da Rua do Monte dos Judeus (foto nº 1), com o traçado do barroco espanhol pertence a outro ramo da família.
Admito ter sido o mesmo mestre pedreiro o autor das duas moradias, tanto mais que a de Miragaia foi mandada edificar por um irmão do José Vicente de Andrade Beleza, de nome Francisco Xavier Beleza de Andrade.

Conta Susan Schneider em O Marquês de Pombal e o Vinho do Porto – Dependência e Subdesenvolvimento em Portugal no Século XVIII, que muitos membros da melhor nobreza proprietários das grandes vinhas do Douro passavam apenas alguns meses por ano na região do vinho. O resto do tempo passavam-no nas suas elegantes casas na cidade, com janelas de grades ornamentadas e brasões policromados sobre as portas.
Acrescenta que tais casas ficavam nos bairros elegantes dos arredores do Porto, ou na aristocrática Rua Chã. E cita o nome dessas famílias – os Leite Pereira, os Pacheco Pereira, os Belleza Andrade, os Sá e Menezes, os Leme Cernache, os Magalhães Coutinho e os Sousa de Mateus, que formavam a aristocracia do vinho do Porto e governavam a cidade e os arredores.
Elucida ela, em dado passo, que Luís Beleza de Andrade era um dos principais cultivadores do Alto Douro e a família possuía grandes vinhas em todo o Douro, em Valdigem, Gouvães e Ventozelo, belas propriedades que produziam pelo menos 200 pipas do vinho mais procurado em cada ano. E acrescenta que, como muitos outros fidalgos do vinho, de igual categoria, os Andrade Belleza também tinham um belo palácio no Porto, onde passavam uma grande parte do ano.
Em nota informa que para se conhecer uma fotografia da sua casa no Porto ver o livro do conde de Campo Belo Portas e Casas Brasonadas do Porto e seu Termo[14].
Há aqui manifesto engano. A casa reproduzida na belíssima aguarela de Gouveia Portuense é a da Rua do Monte dos Judeus, na freguesia de S. Pedro de Miragaia, próximo do edifício da Alfândega, mandada construir, e onde morou e faleceu Francisco Xavier Beleza de Andrade, tio de Luís Beleza de Andrade.
É tempo de eu sair da Casa da Rua Chã, mais correctamente, da Casa da Rua do Loureiro, descansar e arranjar fôlego para, na segunda parte, prosseguir este labor reconstitutivo. Mas antes, para desafogar-me da apojadura deste meu engulho, carreio mais um importante elemento a cimentar o susudito.
O Dr. Fernando de Oliveira, publicou a sua dissertação de conclusão do curso na antiga Faculdade de Letras do Porto, sob o título O Motim Popular de 1757. Escreveu no que vem ao meu propósito: Depois, como no fundo da mesma rua Chã morasse Luis Beleza de Andrade, também vereador da Câmara e provedor da odiada Companhia, os amotinados apedrejaram-lhe as casas e fizeram menção de nelas penetrar com violência. De dentro responderam ao desatino com tiros.
Está correcta esta sua afirmação.

Para informações complementares sobre a história da família Beleza de Andrade e dos outros ramos procedentes da Casa de Levandeiras, recomenda-se a consulta do blog do meu prezado Primo Dr. Luis Filipe Beleza Gonçalves Vaz, dotado de raro entusiasmo por estes estudos e de grande seriedade intelectual:
NOTAS:
[1] Tabelião do Porto, António Mendes e Matos, ADP cota: PO-9-N. 35, fls. 69.
[2] In O Marquês de Pombal e o Vinho do Porto, pág. 59, edição de A Regra do Jogo, Edições, Lª, Lisboa 1980.
[3] Respectivamente a pág. 390 e 392 e a pedra de armas foi publicada na capa do fascículo nº 8.
[4] Cfr. Anais do Instituto do Vinho do Porto, 1950, 2ºvolume, pág. 132 e seguintes.
[5] História de Portugal, 1640-1750, pág. 262 a 264, do Prof. Doutor Joaquim Veríssimo Serrão, e Nobreza de Portugal, vol. I, pág. 596, coordenada por Doutor Afonso Eduardo Martins Zuquete, edição Editorial Enciclopédia, Lª, Lisboa 1960.
[6] Ver Genealogia dos Belezas de Andrade, por Rui Moreira de Sá e Guerra, pág. 202-203, Braga 1966.
[7] História de Gaia, pág. 29.
[8] Tabelião do Porto, Luís José Coelho de Almeida – PO-Nota 73, 4ª série, fls. 68 a 68 verso.
[9] Nas notas do tabelião do Porto, José Vicente da Silveira.
[10] Ver Pinho Leal, no seu Portugal Antigo e Moderno, vol. IX, pág. 537, ao tratar do solar dos Pintos, senhores de Felgueiras, no termo de Tendais.
[11] Cfr. Nobiliário de Felgueiras Gaio, em título Pintos § 39 onde se dá conta que, deste casamento de Luís Beleza de Andrade não houve geração, e título de Alcoforados § 5º N. 14; História do Bispado e Cidade de Lamego – Barroco I, pág. 552 e 553, de Padre Manuel Gonçalves da Costa.
[12] ADP, cota: PO-9-4ª série, N. 102, fls. 43 a 44 verso.
[13] Não ficou esquecida a data da visita, porque nela o Dr. Magalhães Basto ofereceu-me duas separatas dos seus trabalhos publicados no Boletim Cultural da Câmara Municipal do Porto, a saber sobre Dom Bartolomeu Pancorbo e a propósito dum notável edifício quinhentista que existe na Foz do Douro, pois nessas separatas, com a dedicatória, apôs a data de 23-9-1953.
[14] Obra citada da autoria de Susan Schneider a págs. 56, 57 e 87.


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