domingo, 29 de junho de 2008

LUIS BELEZA DE ANDRADE E O MOTIM DE 1757 - III

Foto nº 1
Planta do Porto, vendo-se as ruas citadas no texto,
do itinerário dos amotinados, em 23-2-1757

Não eram cumpridos cinco meses após a instituição da Companhia Geral da Agricultura das Vinhas do Alto Douro, em 10-9-1756, quando eclodiu na cidade do Porto uma revolta popular contra a Companhia que o romancista histórico Arnaldo Gama memorou em Um Motim Há Cem Anos. Serviu também de tema na dissertação de licenciatura de Fernando de Oliveira, na antiga Faculdade de Letras da Universidade do Porto, publicada sob o título O Motim Popular de 1757.

Camilo Castelo Branco relata o acontecimento em Como Deus Castiga – Crónica Portuense[1], mas despreocupado com a exactidão dos factos, na irreprimível expansão da sua imaginação criadora. No decorrer da reconstituição do motim, vão-se comentando as apontadas versões[2].

Tudo aconteceu na manhã de quarta-feira de Cinzas, dia 23 de Fevereiro de 1757. Nas igrejas cumpria-se a liturgia da penitência e à tarde, como de costume, saía a procissão de S. Francisco. Gente dos arredores veio à cidade.
Camilo, na obra citada, erra ao escrever que a procissão de Cinza recolhia pela uma hora e três quarto, quando os sinos da Catedral e da Misericórdia picaram a rebate, pois a verdade histórica é que a procissão saíu da Igreja de S. Francisco às quatro horas da tarde depois de acalmada a cidade. O acórdão proferido em Relação pelos juízes da Alçada em 12-10-1757, publicado em livro no ano de 1758, sob o título Sentença da Alçada que El-Rei Nosso Senhor mandou conhecer da Rebellião na cidade do Porto em 1757, e da qual Sua Magestade Fidelíssima nomeou presidente João Pacheco Pereira de Vasconcelos «…» refere expressamente que os vendeiros se juntaram na manhã do dia 23 de Fevereiro
[3]


Foto nº 2
Livro editado em 1758 com a sentença da Alçada

Também, este livro publica a final, sob o título «Colecção», algumas cartas régias sobre a comissão da mesma Alçada. A primeira carta, de 28-2-1757, dirigida ao presidente da Alçada, o Desembargador João Pacheco Pereira de Vasconcelos, começa desta forma, depois do vocativo: «Eu El-Rei vos envio muito saudar: Sendo-me presente, que na manhã do dia vinte e três do corrente mês de Fevereiro sucedeu na cidade do Porto…» (pág. 95).
Arnaldo Gama, sempre escrupuloso, também indica as 10 horas e meia da manhã para o começo da rebelião[4].
O local da concentração dos amotinados foi na Porta do Olival, à Cordoaria. A sentença o confirma: «Mostra-se mais, que José Rodrigues de alcunha o Grande, João Francisco chamado o Mourão, e António de Sousa de alcunha o Negres ou o Negro, Soldado do Regimento de Infantaria da Guarnição desta Cidade, foram dos principais Amotinadores do Povo; de tal sorte que o dito Soldado, sendo persuadido pelo Réu António de Sequeira Teixeira a ir ao Tumulto, foi dos primeiros, que se acharam na Porta do Olival, aonde ele principiou» (pág. 35, ver também pág. 42).
As mulheres que faziam parte daquele grupo principiaram, em altos gritos, «as vozes sediciosas de Ah que de Povo, Viva o Povo, e morra a Companhia» e para concitarem todo o povo da cidade, os amotinadores planearam mandar tocar a rebate os sinos da Igreja da Misericórdia e da Sé Catedral, logo que principiasse o tumulto, o que veio a acontecer.
Continua a descrição no relatório da sentença: «Mostra-se mais que os Amotinadores para melhor concitarem a Plebe, e fazerem mais pública e formal a sua manifesta rebelião, determinaram que alguns rapazes levassem umas bandeirinhas encarnadas, com ramos de oliveira, para o Povo as seguir» (págs. 53 e 54).
Desta forma, os amotinados foram pela Rua de S. Bento, desceram as Escadas da Esnoga e tomaram a Rua de Belomonte a caminho do Largo de S. Domingos. Levavam o propósito previamente combinado, de se dirigirem à casa do juiz do povo, José Fernandes da Silva por alcunha o Lisboa, um alfaiate e taberneiro que morava defronte do chafariz, interpelando-o para que tomasse a direcção do protesto.
Camilo cometeu um erro palmar neste ponto. Afirma que José Ferreira da Silva, o tal juiz do povo, morava à entrada da Rua do Loureiro, para quem sai da Rua Chã: Ao toque de rebate, ergueu-se medonho alarido na Rua Chã, à entrada da Rua do Loureiro, onde morava o Juiz do Povo, José Ferreira da Silva, justamente na casa onde hoje está aberta uma loja de barbeiro (pág. 253).
Ora, como já foi dito na primeira parte deste trabalho, quem morava na primeira casa da Rua do Loureiro, do lado esquerdo no sentido de quem desce, e que actualmente tem os números de polícia 166-168, depois da última casa da Rua Chã - esta tem os números 133-137 -, era o Dr. Luís Beleza de Andrade (ver fotografia nº 3).

Foto nº 3
Casa da Rua do Loureiro, n.os 166-168 (ao fundo da Rua Chã),
depois de recuperada onde morava o Dr. Luis Beleza de Andrade

Desde o dealbar do século XVI, na parte central do Largo de S. Domingos existia o tal chafariz, que foi demolido em 1845. Em sua substituição, construiu-se uma fonte adossada à parede de um edifício que ficava defronte da fachada do Convento de S. Domingos, ainda hoje existente, mandado construir pelo conselheiro Domingos de Faria.
Posteriormente o prédio ficou a pertencer a Manuel Francisco de Araújo que fundou em 1829, a Papelaria Araújo & Sobrinho. Esta sociedade comercial, para alargar uma das montras, retirou o belo fontenário, que contém a escultura de Santa Catarina e acautelou-o, colocando-o no interior do edifício (ver fotografias nº 4 e 5).


Foto nº 4
Fonte com a imagem de Santa Catarina, agora no interior da Papelaria Araújo & Sobrinhos

Foto nº 5
Edifício da Papelaria Araújo & Sobrinhos no Largo de S. Domingos,
ainda com a fonte adossada à parede

Mas volto ao encalço dos amotinados. Tudo se tinha combinado previamente no sentido de que o juiz do povo, o tal Lisboa, pretextaria o estado de doente por ter tomado uma purga e que fora violentado ao tumulto (sentença, pág. 23), de forma a não cair nas malhas da justiça inculpado por comparticipação no motim.
A multidão reclamava a sua presença, e escutado pretexto, rolou-se ameaçadora contra a porta da casa pois o povo não sabia a prévia combinação com os dirigentes do movimento. Ele apareceu e continuou a invocar a sua doença: Viva o povo! Eu sou do povo! Mas, senhores, eu estou muito mal…estou muito doente. Tomei uma purga… não posso ter-me em pé. Assim reconstrói Arnaldo Gama os seus dizeres.
Os amotinados José Rodrigues, João Francisco e o soldado José Pinto de Azevedo foram à vizinha Rua Nova, buscar uma cadeirinha de mãos em que, segundo o plano ajustado, devia nela ser transportado o juiz do povo (como consta do relatório da sentença (pág. 36 - § XVI), a fim de ser o cabecel da revolta.
O arruamento aludido, hoje denominado Rua do Infante D. Henrique, na altura era conhecido pelo nome de Rua Nova, que fora mandada rasgar por D. João I e a que o monarca depois chamou «a minha Rua Formosa». Com a construção da Feitoria inglesa, iniciada em 1785, passou a designar-se Rua Nova dos Ingleses e recentemente passou a ter o nome de Rua do Infante D. Henrique a memorar-lhe o nascimento nas imediações, de harmonia com a tradição.
Chegada a cadeirinha, conta Arnaldo Gama: O juiz meteu-se na cadeirinha, e a multidão começou então a mover-se pela rua das Flores acima.
Não me dispenso de transcrever a passagem, genialmente escrita com a pena do grande aflito de Seide sobre o mesmo tema: O povo apelidava pelo seu juiz, o qual, chegado o momento de tomar a dianteira do motim, de tamanho terror se gelara, que simulou uma doença, mostrando, para que o deixassem, a garrafa do purgante que havia de tomar naquele dia, se o não atacasse a tosse violenta. A plebe, menosprezando os achaques gástricos do seu covarde caudilho, mandou buscar à Rua Nova uma cadeirinha, e forçou o enfermo a encurralar-se naquele veículo, aliás irrisório para um representante do povo, um tribuno, uma relíquia dos anciãos municípios, que devia arengar ao chanceler, ao provedor da Companhia, ao regedor das Justiças, e ao próprio rei, sendo necessário, em prol do seu povo[5].
Nas igrejas da Misericórdia e da Sé os sinos continuavam a tocar a rebate. A turba adensava e comburida pelos insistentes pregões ganhou o Largo de S. Bento, onde sediava o convento das monjas beneditinas de Ave-Maria (no dealbar do século XX, foi demolido este belo edifício para, no seu local, ser edificada a estação de S. Bento cujo edifício é do risco do arquitecto Marques da Silva), e daí subiu a íngreme Rua do Loureiro que o confrontava pelo lado sul.
Assomada a Rua Chã, a multidão já calculada em 5.000 pessoas, dirigiu-se à casa de morada do desembargador Bernardo Duarte de Figueiredo, corregedor do crime e chanceler das justiças, insultando, e violentando o dito Ministro com atrevidas vozes, e ameaças, para que desse por extinta a Companhia, como consta da sentença, o que ele formalizou assinando os documentos, coacto, e violentando-o a que os mandasse afixar e publicar a som de caixas, e que nomeasse para o caso as ausências do Juiz do Povo actual, Joseph Fernandes da Silva, de alcunha o Lisboa, outro também da sua facção, chamado Thomaz Pinto, determinando, que se fechassem as Tavernas da mesma Companhia, e se devassassem os seus Armazéns (pág. 7 da sentença - § 1º).
A referida casa de morada do desembargador Bernardo Duarte de Figueiredo fica sobre o arco da antiga Viela da Cadeia, actualmente designada Travessa da Rua Chã, e tem na dita Rua Chã o número de polícia 92 (ver fotografia nº 6).


Foto nº 6
Casa da Rua Chã nº 90 onde morava o Corregedor Dr. Bernardo Duarte de Figueiredo

A mole imensa, galvanizada pelo êxito, propôs-se continuar a cumprir o programa preestabelecido de queimar a documentação da instituição e ajustar contas com o provedor Luís Beleza de Andrade que morava a escassos metros do corregedor da justiça, ao fundo da Rua Chã, ou mais precisamente, na última casa da Rua do Loureiro, do lado esquerdo quem desce, junto da qual os amotinados ainda há pouco tinham passado quando subiram este arruamento.
Para aí se volveram os amotinados que apedrejaram as janelas e fizeram menção de arrombar as portas. De dentro, um criado e outro homem que aí casualmente se encontrava, dispararam dois tiros de bacamarte, contra o povo. Houve feridos. O relatório da sentença alude ao réu ausente Manuel Fernandes da Trindade, sapateiro, nestes termos: se prova com evidência o estar entre eles à porta do Provedor da Companhia, por ficar mal ferido de um de dois tiros, que em sua defesa deram de casa do dito Provedor «...» (pág. 49).
A multidão, exasperada, rebentou as portas, penetrou na casa, despedaçou o rico mobiliário, mesas, espelhos, tremós, adornos preciosos e até vários títulos de propriedades, e revolveu as alamedas do pequeno jardim. Uma tal Gertrudes Quitéria dava o ponto à grita persecutória:
- Morra tudo! Queime-se este Beleza! Deite-se fogo às casas, e queime-se tudo.
Maria Pinta foi das primeiras que subiram a escada do mesmo Provedor do que depois se gabara, chamando-lhe publicamente ladrão, e afirmando, que sentira muito não o achar em casa para o martirizar pelas suas próprias mãos, conforme se lê no relatório da decisão judicial (pág. 43 e 44).
Da parte da multidão também se dispararam tiros. Conta o genealogista Felgueiras Gayo[6] que um tal João de Araújo, natural de Lamego, fora alfaiate e depois camurceiro. Decaindo de bens foi escudeiro de Luís Beleza do Porto e de sua mulher Joana Tomásia, e acrescentou: depois entrou a negociar em seda em rama com alguns dinheiros que lhe deram para se compor com quem lhe tinha dado um tiro que ia destinado para o Amo na ocasião do levante do Porto.
Entretanto, os seus moradores tinham fugido pelas traseiras que davam para o Corpo da Guarda.
Contíguos à casa de morada do provedor ficavam os escritórios da Companhia que a turba assaltou, destruindo e lançando à rua vários documentos e livros que encontraram.
A sentença relato o evento deste feitio: mas continuando ainda em acumular absurdos a absurdos, forão assaltar as cazas da dita Companhia, e outras immediatas do Provedor da Junta da sua Administração, Luiz Belleza de Andrade, quebrando-lhe as janellas às pedradas, arrombando as portas, e despedaçando, e rasgando, depois de se apoderarem das ditas cazas, não só os moveis, e alfayas, com que ellas se ornavão mas até as Leys firmadas pela Real Mão de Sua Magestade Fidelíssima, e os mais papeis, e livros da referida Companhia, que descançava segura à sombra da immediata protecção do mesmo Senhor, pretendendo os Rebeldes arruinar também por este modo o cabedal dos Accionistas interessados na dita Companhia Geral (pág. 7).
Arnaldo Gama apresenta a sua versão:
Luis Beleza de Andrade tinha já mandado fechar e trancar as portas. A populaça, mal chegou defronte da casa dele, soltou um grito medonho, e assaltou-lhe à pedrada as janelas.
- Abaixo a Companhia! Morra o provedor dos ladrões! Viva o povo! Deitem-lhe fogo às casas! Queime-se esta Beleza!
Assim exclamava a turba, apedrejando as janelas e arremessando-se de quando em quando, de encontro às rijas portas do provedor, que rangiam mas que se mostravam que não cederiam facilmente. A resistência excitou cada vez mais os ânimos. Já não havia um só vidro inteiro nas janelas. A populaça raivava furiosa, atroando os ares com espantoso alarido. Alguns amotinados já tinham chegado carregados de carqueja e lenha, e pediam em altos gritos que viesse lume para se incendiar a casa do chefe dos salteadores da Companhia «…» (cfr. local citado pág. 264).

Gama estranhamente, coloca a casa do provedor à entrada da Rua da Bainharia, como houve já ocasião de referir na I parte deste estudo. Isto queria dizer que a multidão depois da casa do corregedor continuou pela Rua Chã, rumo ao Arco da Vandoma, a sul, para depois descer ou pelos Pelames ou por S. Sebastião até à Bainharia. Porém, nunca Luis Beleza aí morou. Todos os documentos o sediam ao fundo da Rua Chã ou já na Rua do Loureiro, que tudo se reconduz à mesma referência, como foi demonstrado à saciedade na I parte deste estudo.
Foi esta a razão que me levou a escrever que fazia sentido os manifestantes prosseguirem o trajecto para a Bainharia, e não voltar a trás, por onde tinham passado pouco antes e deixado incólume a casa do provedor, sem tomar em conta, no entanto, que o programa previamente assente foi o de obter-se a extinção da Companhia pela mão do corregedor Bernardo Duarte de Figueiredo, para depois eliminarem-se os documentos e responsabilizar-se, através de molestação física – a tal justiça popular - os dirigentes do organismo nocivo.
Mas ainda piorou a versão Camilo Castelo Branco ao escrever que o tumulto, depois de deixar a casa de Bernardo Duarte de Figueiredo, ondeou para a Rua Nova (ou seja, pela actual Rua do Infante D. Henrique), e parou à porta de Luis Beleza de Andrade.
Vai ao ponto de escrever que a sorte do provedor seria igual à dos deputados da Companhia, se a noite não interviesse e com ela a letargia das fúrias já prostradas pelo excesso nuns e entregues nos outros (pág. 256).
É ocioso perder mais tempo com a análise das inexactidões que conflituam com a sentença da Alçada.
A sorte de Luis Beleza e da família foi fugirem pelas traseiras da casa para o Corpo da Guarda.
A intervenção de uma força da Guarda da Infantaria pôs termo aos desacatos depois de ser apedrejada pelos amotinados. Lê-se na sentença: Resistindo e insultando à Guarda de Infantaria, que acudiu a sossegar os ditos Rebeldes, os quais se atreveram a apedrejar, não só os Soldados e Oficiais de Guerra, mas também ao Desembargador Fernando Leite Lobo, Corregedor do Cível desta Relação «…».
Os desacatos prosseguiram nos dias seguintes pelos autores dos factos relatados não só atrevidamente amotinados, em comprar os vinhos da referida Companhia pelos preços que lhe pareceu arbitrar, e em vendê-los nas Tabernas, que quiseram abrir em desprezo do Privilégio exclusivo, que Sua Majestade Fidelíssima havia concedido à mesma Companhia «…» (sentença pág. 8).
(continua)
ver também sobre a família Beleza de Andrade: o site:

NOTAS:
[1] A sua publicação em Obras Completas de Camilo Castelo Branco, vol. IX, pág. 235 a 257, edição Lello & Irmão – Editores Porto, 1988, sob a direcção do Prof. Justino Mendes de Almeida, que agora seguimos nos comentários do texto.
[2] Sobre o tema, publiquei o estudo «O Dr. Luís Beleza de Andrade e a Fundação da Companhia Velha» no semanário A Voz de Trás-os-Montes no ano XLII, n.os 2067 a 2074, respectivamente de 22-6-1989 a 31-8-1989.
[3] Livro impresso na Oficina do Capitão Manuel Pedroso Coimbra, no Porto, ano 1758, pág. 51.
[4] Um Motim há Cem Anos, edição da Livraria Tavares Martins, Porto, 1935, pág. 251.
[5] Camilo, lugar citado, pág. 253.
[6] No seu Nobiliário, em título Barretos Velhos de Viana do Minho, no § 79 N. 14, edição ano 1989, II vol., pág. 509.














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